Este trabalho tem como objetivo apresentar o resultado de uma meticulosa pesquisa concernente às especificidades dos deficientes auditivos. Abordaremos os problemas que impossibilitam a inserção do surdo na sociedade.
O mecanismo
suplementar que empregaremos em nossa discussão diz respeito à existência ou
não de uma cultura peculiar dos surdos. Em outras palavras, discorreremos
acerca dos empecilhos de se empregar o termo “cultura surda” com a finalidade
de determinar a comunidade representada pelos deficientes auditivos. Não
estaremos defendendo pontos de vistas sobre o tema no decorrer das análises
propostas, mas tão-somente avaliando as implicações intrínsecas ao emprego de
tal termo.
Partindo-se de pressupostos conceituais arraigados na sociedade atual, utilizaremos
proposições teóricas e pragmáticas no sentido de se entender a forma pela qual
o surdo é tratado na comunidade. Avaliaremos também os elementos adotados por
eles para adaptar-se na sociedade a qual pertence. Isto é, o estabelecimento de
parâmetros constitutivos que viabilizarão melhores condições para se integrar
no seu ambiente.
Dentro da lógica de relações de poder, embasados
por princípios marxistas, debateremos o quanto é complexo o convívio de duas
especificidades de valores e costumes completamente distintos. Ou seja, o
quanto é complicado para os surdos, que possuem tradições culturais peculiares,
se inserirem na sociedade que, na sua essência, já estabeleceu previamente um
conjunto de normas que devem ser seguidas. Estruturalmente dizendo, inexiste
uma relação de cumplicidade no interior da coletividade, isto é, a “cultura
dominante” não concede espaço para que outras formas de representações se
consolidem.
Analisaremos
sucintamente os elementos importantes para se determinar a existência de uma
cultura na sociedade, definiremos quais são os fundamentos básicos para se
explicar as tradições de uma comunidade. Partindo-se de proposições
pragmáticas, onde algumas questões como religião; nacionalidade; formas de
comunicação; etnia; costumes; história; dentre outras, são indispensáveis para
se determinar a existência ou não de uma cultura, debateremos, sobremaneira, o
papel exercido pelo surdo na sociedade que impôs um amálgama de traços
culturais específicos.
Enfim, propomos
avaliar e destacar as implicações inerentes à utilização do termo “cultura
surda”. Partindo-se de uma visão organicista, discorreremos acerca dos fatores
determinantes para se entender as especificidades das comunidades surdas e os
mecanismos empregados na relação com a chamada “cultura dominante”.
Historicamente os surdos sempre
foram estigmatizados, pois faltavam-lhe o essencial para enquadrá-los como
seres humanos: a linguagem (oral e bem delimitada). Sem contar que existia a
crença de que eles não possuíam um potencial cognitivo adequado para cumprir
uma função preponderante na sociedade. Eles não conseguiam, em decorrência do
preconceito prevalecente na comunidade, serem aceitos plenamente, pois a
inexistência da linguagem oral atribuía-lhe uma condição de inferioridade.
Todo esse estigma culminou num
perceptível afastamento do surdo no tocante à estrutura cultural dominante.
Isto é, os surdos passaram a se isolar diante do conjunto de regras e normas
prévias legitimadas pela sociedade. Criou-se com isso, a crença de que existe
uma cultura surda no interior da coletividade, que poderia ser chamada de
sub-cultura. Teria como objetivos primordiais viabilizar uma proteção perante o
preconceito da chamada “cultura dominante”, e estabelecer uma identidade peculiar
à comunidade surda.
Porém, a problemática levantada
pelos estudiosos do tema diz respeito à real existência de uma “cultura surda”
no interior da sociedade, isto é, os elementos condicionantes para se afirmar a
existência de traços culturais de uma grupo minoritário, dentro de uma cultura
sobrepujante.
Um dos elementos de substancial
importância para se definir a “cultura surda” diz respeito à sua forma de
comunicação. O estabelecimento de sua identidade está condicionado à forma pela
qual se interage na sociedade, mais precisamente, a sua linguagem. Seria o
elemento diferenciador no que concerne à especificidade do seu contato com a
cultura majoritária através da comunicação.
Uma
pessoa surda é aquela que, por ter um déficit de audição, apresenta uma
diferença com respeito ao padrão esperado e, portanto, deve construir uma
identidade em termos dessa diferença para integrar-se na sociedade e na cultura
em que nasceu.[1]
Sem negar a existência da “cultura
surda”, Behares argumenta que os surdos procuram encontrar mecanismos no
sentido melhor interagir com a cultura dominante. Em outras palavras, o
deficiente auditivo necessita encontrar elementos para se estabelecer na
sociedade, cujas formulações conceituais e tradicionais já estão previamente
arraigadas.
A sociedade de um modo geral
consolida um padrão cultural e modalidades de vivência que acha mais
conveniente. Quem não se enquadra nesse padrão é classificado como anormal.
Inexiste uma política de inserção do surdo ou outras comunidades minoritárias
no padrão materializado pela cultura dominante. Com isso, o surdo precisa
redefinir traços e conceituações teóricas e práticas com a finalidade de se
fazer presente na comunidade que o cerca.
Toda discriminação e preconceito
estão relacionados à estruturação de significações culturais inerentes à
cultura sobrepujante. Vale ressaltar que o surdo é classificado, de uma maneira
subjetiva, como um estrangeiro em seu próprio país. As normas sociais acabam
colocando-o à margem da sociedade por causa de sua forma de comunicação, seu
comportamento, seu modo de agir sobre o mundo e a sua maneira de pensar. Com
isso, tudo que foge das normas pré-estabelecidas é considerada destituída de
racionalidade.
Partindo-se do princípio de que
estamos inseridos numa relação de poder, que uma reclassificação de preceitos e
valores, existe uma força veemente exercida pela “cultura dominante” sobre
outras formas de manifestação cultural, consideradas minoritárias. Torna-se
prontamente perceptível que há uma imposição da cultura tida como mais
solidificada sobre as demais, consideradas inferiores (como a “cultura surda”).
O objetivo dessa imposição é fazer com que os surdos percam sua identidade, e
que sua diferença seja assimilada ou disfarçada.
Existem
duas correntes de pensamento completamente distintas no que concerne à questão
da cultura surda. Uma favorável e outra totalmente contrária à sua existência. Para os defensores dessa representação
cultural, distinta da cultura majoritária, o argumento consiste em sua
especificidade lingüística e seus valores peculiares, onde o surdo estaria
visivelmente destacado e imune mediante os costumes e tradições vigentes. Vale enfatizar que o argumento dessa tese gira
em torno da questão da linguagem, da forma do surdo se comunicar na comunidade.
Sem contar que alguns deficientes auditivos são contrários à interação com os
ouvintes, justamente em decorrência do medo de sofrer preconceito e
discriminação. Esses elementos seriam a prova cabal da existência de uma
cultura redefinindo mecanismos particulares no sentido de se enquadrar na
estrutura social pré-concebida.
Há uma grande
porcentagem de casamentos endógamos. Os membros da comunidade crêem, tal como
os de outras minorias culturais, que se deve casar também com membro
pertencente à minoria: o casamento com uma pessoa ouvinte é totalmente
desaprovado. Ou seja, ainda permanece, implicitamente, o medo do preconceito.[2]
Vale frisar que a separação entre
ouvintes e não-ouvintes é resultado das relações humanas, que estabelece normas
e condutas padronizadas que devem ser seguidas rigidamente. Nesse sentido, as
insígnias de “cultura surda”, “comunidade surda”, “identidade surda”, servem
para delimitar os espaços ocupados pelos deficientes auditivos nas sociedades
as quais pertencem. Isto é, o surdo teria com isso o seu lugar devidamente
marcado no conjunto das relações sociais. Portanto, mais uma forma de
preconceito contra os surdos.
Um dos critérios empregados para se
justificar a suposta hegemonia da cultura dos ouvintes diz respeito ao aspecto
quantitativo. Isto é, a população ouvinte é muito superior à comunidade de
surdos. Esse argumento é nitidamente preconceituoso e desprovido de qualquer
princípio humanista. Esse elemento não seria suficiente para explicar e
consolidar a preponderância de determinados grupos sociais sobre outros.
Inegavelmente os surdos possuem
alguns traços culturais específicos, que os distinguem do conjunto de costumes
e regras pré-estabelecidas pela cultura chamada “dominante”. O exemplo claro
disso é a sua forma de comunicação. O problema está em classificar os surdos
como idênticos, pois isso invariavelmente culminaria na perda de sua
especificidade. Essa especificidade está relacionada à religião, nacionalidade,
etnia, costumes, que os surdos trazem intrínsecos em sua personalidade, mas que
são desconsiderados em virtude de sua surdez. Em outras palavras, o surdo não é
visto em sua totalidade, ou seja, em sua essência e constituição social e
formação ideológica e política, mas tão-somente no que concerne à sua condição
de deficiente auditivo.
Não
existe uma identidade exclusiva e única como a surda. Ela é construída por
papéis sociais diferentes (pode-se ser surdo, rico, heterossexual, branco,
professor, pai) e também pela língua que constrói nossa subjetividade. A pessoa
é um mosaico intrincado de diferentes potenciais de poder em relações sociais
diferentes. Nesse caso, não há escolhas “livres” nas nossas identidades; isso
depende da nossa vontade. Elas são determinadas pelas práticas discursivas,
impregnadas por relações simbólicas de poder.[3]
Portanto, é demasiadamente complexo
afirmar a existência de uma “cultura surda” no âmago da sociedade. O surdo
possui uma rede de conceitos e valores que lhe foram passadas pela cultura dita
“sobrepujante”, mesmo que ele esteja isolado do convívio social e procurado
manter-se imune perante o que lhe fora outorgado. O homem, independente de sua
condição física, é o reflexo da sociedade a qual pertence. I
O que a comunidade surda procura
estabelecer são articulações no sentido de adaptar-se à realidade, ou seja,
procura redefinir valores e conceitos com a finalidade de legitimar uma melhor
convivência na sociedade.
Levando
essas considerações para o campo da surdez, vemos que, longe de ser apenas um
debate por direitos ou de tentar trazer melhorias para o surdo, a defesa da
cultura surda atualiza os mecanismos de reprodução da própria desigualdade, e o
termo “cultura” passa a ser um dos instrumentos de legitimação dessa
desigualdade e da tentativa de preservar uma idéia de homogeneidade.[4]
Na sociedade atual, dominada pelas
vertentes da política neoliberal, onde princípios humanitários são
desvalorizados costumeiramente em nome de valores materiais, a utilização do
termo “cultura surda” acaba ganhando conotações pejorativas e deturpações em
sua funcionalidade. Torna-se com isso, mais um instrumento de segregação e
consolidação da desigualdade no interior da sociedade, pois o espaço do surdo
estaria bem delimitado e previamente definido.
O que deve ser repensado no que
concerne às relações sociais e o papel que o surdo exerce na sociedade, diz
respeito à forma como enxergamos o outro. Isto é, os problemas inerentes à
busca de aceitação com o que é diferente. Há uma redefinição estratégica de
valores e princípios sócio-culturais de representações sobre o que lhes são
estranhos. Há uma dificuldade muito grande em se entender as formulações
estruturais da personalidade alheia.
O que devemos enfatizar é que há uma
infinidade de problemas em se analisar as relações sociais partindo-se da
dicotomia entre os pressupostos conceituais entre os ouvintes e não-ouvintes. A
arquitetura social não se reduz somente a isso evidentemente. A identidade
seria construída de uma maneira extremamente negativa, pois delimitaria,
sobremaneira, o campo de participação do surdo na sociedade. Seria outro
mecanismo para se concretizar a segregação e a desigualdade na comunidade.
Vale ressalvar que a linguagem não
pode ser apontada como o único elemento para se determinar a fundamentação teórica
e epistemológica da cultura. Outros requisitos são essenciais para determinar a
identidade de uma determinada sociedade, como a etnia, a nacionalidade, a
religião, concepções políticas e estéticos, dentre outras. Não é algo
homogêneo, mas totalmente dinâmico e variado.
Sem contar que em praticamente todas
as relações sociais existe uma luta incessante não só pela concretização de
poderes como também por saberes. E as comunidades consideradas “minoritárias”
estão sempre colocadas à margem da sociedade, como se fossem incapazes de
representar e modificar a estrutura organizacional da coletividade.
É evidente que existem traços
culturais específicos no âmago da comunidade surda, com uma identidade
definida, consolidada através de sua forma de comunicação. Todavia, o que
procuramos afirmar no decorrer de nossos estudos foi que a utilização do termo
“cultura surda” serve como mecanismo para viabilizar a segregação social. Sem
contar que existe uma infinidade de proposições relevantes que devem ser consideradas
para se classificar a estruturação de uma cultura.
Positivamente, a afirmação de uma
identidade surda e de suas distinções no que diz respeito ao papel que o
deficiente auditivo exerce na sociedade, traduz um desejo de garantir-lhes o
acesso aos bens sociais enquanto direito,
não enquanto concessão. Que o surdo
deve ser respeitado como ser humano, portador das mesmas aptidões dos ouvintes
e capaz de agir e transformar sua história.
Bibliografia
BEHARES, L. E.
“Novas correntes na educação do surdo: dos enfoques clínicos aos culturais”.
In: cadernos de educação especial.
Universidade Federal de Santa Catarina, V, n.4, 1994
LOPES, L. P. M.
“Discursos de identidade em sala de aula de L1: a construção da diferença”. In:
SIGNORINI, I (org.). Língua (gem) e identidade. Campinas: Mercado das
Letras/Fapesp/ Faep, 2001
SANTANA, Ana
Paula. “Surdez e linguagem”. 2° Ed. São Paulo. Plexus, 2007
SANTANA, Ana
Paula. BERGAMO, Alexandre. “Cultura e identidade surdas: encruzilhada de lutas
sociais e teóricas”. 2° Ed. São Paulo. Plexus, 2005
SÁ, Nídia Limeira
de; “Cultura, poder e educação de surdos. 1° Ed. São Paulo: Paulinas 2006
[1]
BEHARES, L. E. “Novas correntes na educação do surdo: dos enfoques clínicos aos
culturais”. In: cadernos de educação
especial. Universidade Federal de Santa Catarina, V, n.4, 1994, p.1
[2]
SANTANA, Ana Paula. “Surdez e linguagem”. 2° Ed. São Paulo. Plexus, 2007, p. 48
[3]
LOPES, L. P. M. “Discursos de identidade em sala de aula de L1: a construção da
diferença”. In: SIGNORINI, I (org.). Língua (gem) e identidade. Campinas:
Mercado das Letras/Fapesp/ Faep, 2001, PP. 303-330.
[4] SÁ,
Nídia Limeira de; “Cultura, poder e educação de surdos. 1° Ed. São Paulo:
Paulinas 2006, p.36
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